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quarta-feira, 12 de outubro de 2011



O MAR DE MARIA
“Mas, neste espelho, no fundo
desta fria luz marinha,
como dois baços peixes,
nadam meus olhos à minha procura.
Ando contigo, e sozinha...”
Cecília Meireles

Eu não sei como ela se chamava. Por isso vou batizá-la de Maria.
Maria, tão perto, na palma da minha mão;
Maria tão longe, mãe de Deus nas alturas;
Maria, nome de toda mulher...
Mas, neste caso, mais Maria, porque enquanto vivia via que para o mar ia... Aquele mar de mistérios de onde emerge a poética de Cecília Meireles. Mar profundo de onde surgem os símbolos do Garcia Marques. Mar dos liquens, da fluidez, do eterno ir e vir, da reconciliação em que a gota se descobre na onda....
Foi assim. Maria, um dia ouviu o chamado do mar. E foi. Para não voltar mais. E agora tudo acontece inútil...
Nunca vi a Maria. Como já disse, nem sei como ela se chamava, nem de que cores eram seus olhos e cabelos, e não sei se ela gostava de pores de sol e borboletas. Como é curioso que um rosto estranho possa atrair. Para aqueles para quem amor é uma questão de visão, de toque, de presença, isto pode parecer loucura. Talvez eu seja louco. Mas o fato é que amo pessoas que nunca vi, pois já morreram, e pessoas que nunca vi porque não nasceram.
Amo os precursores, que andaram pela primeira vez pelos caminhos por que hoje ando, e deixaram suas marcas nas árvores que foram plantadas (sem que tivessem, eles mesmos podido assentar-se à sua sombra) e nas palavras que foram escritas e que ainda hoje ouvimos como testemunhos do passado. Amo, por outro lado, aqueles para quem espero ser um precursor, e em cada gesto, podem crer, existe um pouco de amor por aqueles que virão.
Houve tempos negros, Maria, em que o seu ato provocaria o tremor de santos e pecadores, e as portas das igrejas e dos túmulos se fechariam em horror. Os vivos continuariam a matá-la mesmo depois de sua morte. Levou muito tempo para que aprendêssemos que o horror era uma confissão de que o seu gesto era bem nosso, terrivelmente nosso. Demônios ausentes não provocam medo e nem precisam ser exorcizados. É quando o demônio mora em casa que o seu nome não pode ser pronunciado... Ele poderia acordar... Se os homens fechavam os olhos e as mulheres se calavam, era porque reconheciam a fraternidade que os unia com você. E isto, Maria você é nossa irmã. A diferença está em que enquanto esperamos que o mar nos engula, você, Maria foi ao seu encontro, triste e irremediavelmente.
Maria, seu gesto foi uma mensagem – mensagem que se desprende também de cada pessoa, em cada tristeza, em cada pergunta sobre o sentido da vida. Eu me lembrei de Camus,  O mito de Sísifo. Camus também foi um amigo seu, que procurou entender o seu gesto antes que ele acontecesse. O que está em jogo é o sentido da vida. A vida vale a pena? Para quê? Estas, Maria são questões que todos nos colocamos. Mas as colocamos covardemente, com  medo, e as sufocamos debaixo do trabalho, da caderneta de poupança,  da novela, da religião. Como você, Maria, todos tememos e todos nos perguntamos se vale a pena viver – num sussurro.
Mas eu gostaria de ter podido ser seu companheiro na sua dor. Talvez você tenha mergulhado no mar por não ter sido possível mergulhar no amor. A solidão, o silêncio, a palavra sem volta – e a gente olha e vê as máscaras e as pedras. Mas Maria, você não precisava ter ido. E era isto que eu queria dizer. O canto das cigarras é belo, as nuvens continuam a dançar, há crianças brincando de “eu sou filha de carpinteiro da marré, marré, marré”, nada, nem mesmo os deuses, poderão apagar o fato de que Beethoven escreveu a nona sinfonia e o adágio da sonata ao luar... Você me perguntaria: mas isto tem sentido? E eu lhe perguntaria, nas palavras de um homem a quem amo, Nietzsche : “Por que será necessário olhar primeiro atrás das estrelas para só depois viver a vida?” É necessário não pedir da vida o que ela não pode dar.
Queremos que ela nos gere deuses, quando ela só nos pode oferecer filhos pequenos, fracos e mortais. Não, Maria, “como  dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena”... Não que eu tenha andado atrás das estrelas. É apenas o conselho da sabedoria  de um velho feiticeiro índio, D. Juan. Quando lhe perguntaram que caminho a sua sabedoria dizia que deveríamos seguir, respondeu: “Não importa. Todos os caminhos conduzem ao mesmo lugar. Escolhe, portanto, o caminho do amor.” Você já chegou a este “mesmo lugar”. Mas o seu grito ficou e, quem sabe, ele ensinará mais amor a alguém...
* * *
Uma leitora, picada pela minha referência ao discurso de Zaratustra, pediu-me que eu dissesse mais aquilo que ele disse ao povo que se ajuntara na praça para ver o espetáculo do equilibrista. O texto é longo. Não posso transcrevê-lo todo. Vão alguns aperitivos. Eu lhes ensino o homem transbordante. Na verdade o homem é um rio poluído. É preciso ser um mar para receber um rio poluído sem ficar  impuro. Eu lhes ensino o homem transbordante. Ele é o mar. Ele é um relâmpago, um frenesi. O homem é uma corda amarrada entre a besta e o homem transbordante – uma corda sobre o abismo. O que há de grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem é que ele é uma abertura e um mergulho. Eu amo aqueles que não precisam primeiro olhar atrás das estrelas para encontrar uma razão para mergulhar e se transformarem num sacrifício, mas que se sacrificam livremente pela terra... Eu amo aquele que não quer ter muitas virtudes. Uma virtude é mais que duas... Eu amo aquele que tem um espírito livre e um coração livre porque assim sua cabeça nada mais é que as entranhas do seu coração... É chegado o tempo para o homem plantar a semente de sua esperança mais alta. O seu solo ainda é rico o bastante. Mas um dia o solo ficará pobre e domesticado e nenhuma árvore alta será capaz de crescer nele. O tempo está chegando em que o homem não mais será capaz de lançar  a flecha da sua nostalgia além de si mesmo e a corda do seu arco se esquecerá de como vibrar. O tempo está chegando quando o homem não mais será capaz de dar à luz uma estrela. Nenhum pastor! Um grande rebanho. Todos desejam a mesma coisa. Quem quer que tenha sentimentos diferentes vai voluntariamente para o hospício de loucos. Eu vim para seduzir muitos a sair do rebanho. Veio-me então uma iluminação: preciso de companheiros – não de companheiros mortos e cadáveres que carrego comigo por onde quer que eu vá.  Preciso de companheiros vivos que me seguem porque desejam seguir a si mesmos... Nunca mais  falarei ao povo. Não sou boca para esses ouvidos. Falei pela última vez aos mortos...”

 Publicado no Correio Popular 03/04/2005
Rubem Alves


Ramalhete EspiritualBeijos meus cheios de,
luz, paz, amor, fé e esperança!





Um comentário:

Alfa & Ômega disse...

Rô, que saudadinha de você e de seu cantinho mimoso. Tudo bem com vc, minha querida? Li esse texto mas confesso que não coonsegui me inteirar sem ler o contexto e entendê-lo. Um grande abraço e um monte de beijinhos!